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Osvaldo Russo
Português cigano estudante de Direito na Universidade de Coimbra
Muito se tem dito sobre os resultados das últimas eleições legislativas em Portugal. Os políticos do partido que governou nos últimos 8 anos assumiram uma derrota que, aos olhos de uma grande parte da população portuguesa, foi precipitada, pois ainda faltam atribuir 4 mandatos e este tem mais um mandato do que o partido rival.
O líder do partido logo assumiu a posição de ser o partido da oposição nos próximos 4 anos, ainda que a contagem dos mandatos estivesse muito disputada e ainda por definir.
Questões são levantadas e continuam sem resposta, tais como: Este assumiu a derrota por considerar que iria conquistar uma nova maioria absoluta e não ter conseguido atingir o seu objetivo? Terá este a vontade em liderar o governo, caso venha a vencer as eleições? Terá este a preparação necessária para governar? Estará com receio de não ter competência e aptidão necessárias para governar e por consequência acentuar a crise política existente no país e outra consequente queda do governo? Será uma questão de falta de vontade ou incompetência em governar? Que credibilidade terá um político autoproclamado de “derrotado precipitado” a governar?
Muitas questões, mistérios e teorias são levantadas sobre a verdadeira realidade do país. Mas a mim, particularmente, o que mais me intriga – não desprezando os problemas existentes no país, que são questões essenciais de várias naturezas que dão a possibilidade de exercício pleno dos seus direitos e de ter uma vida digna, aos cidadãos portugueses – foram as declarações deste líder, quando disse que não acreditava que existiam mais de um milhão de eleitores com ideologias fascistas em Portugal. Talvez esta declaração tenha sido interpretada de forma inofensiva para uma grande parte da população portuguesa. O facto é que para as pessoas que são ostracizadas pelo preconceito sofrido pelas suas condições socioeconómicas e culturais, esta declaração foi bastante ofensiva, pois é como se este desprezasse a desilusão e insegurança sentida pelas pessoas mais desprotegidas e atacadas pelas declarações do líder do partido antissistema com ideologias fascistas que, desde a criação deste partido, sempre dedicou a sua campanha e debates a atacar as pessoas mais vulneráveis e indefesas do sistema, normalizando e incentivando o ódio em relação a estas pessoas. O fascismo não foi extinto com a queda do regime nazi da Alemanha que assombrou grande parte da Europa. O fascismo somente foi adormecido, pois as ideologias fascistas nunca deixaram de existir, o que existia era uma vergonha ou receio de se declararem como tal. Para alguns cidadãos nunca lhes foi possível exercerem a plenitude dos seus direitos fundamentais e o cumprimento dos seus deveres.
É como se o recém-eleito líder do partido que governou nos últimos 8 anos se colocasse ao lado dos fascistas, numa tentativa de “reconquistar” este eleitorado, não tendo sequer ponderado em pronunciar-se na defesa ou dar uma palavra de conforto para com os cidadãos que tanto têm sofrido com o partido antidemocrático da nossa democracia, aumentando ainda mais o sentimento de insegurança e desilusão na democracia portuguesa.
É preciso assumir que o nosso sistema é tendencialmente preconceituoso, se assim não fosse, não existiam certos problemas no nosso país. Não assumindo esta natureza do sistema, só se está a contribuir para o crescimento do fascismo e para a discriminação destas pessoas que se deparam com o preconceito e sofrem diariamente.
Como retrata uma notícia publicada pelo Jornal Público, através de um estudo elaborado pela antropóloga Ana Rita Alves, que revela que pessoas de etnia cigana têm 43 vezes mais probabilidades de serem mortas pelas forças de segurança, em Portugal, do que uma pessoa que não é cigana. O mesmo estudo indica que pessoas afrodescendentes, têm 21 vezes mais probabilidade de serem mortas pelas forças de segurança, em Portugal. Mas isto não se aplica apenas a pessoas de etnia cigana e a afrodescendentes, aplica-se também a pessoas em que exista fragilidade no seu contexto socioeconómico.
A nossa Justiça não é justa para todos, assumindo, por vezes, a forma de injustiça para alguns.
Uma das formas de averiguar as falhas da (In)Justiça portuguesa é na atuação das nossas forças de segurança e nos critérios de aplicação da moldura penal pelos juízes.
As forças de segurança pública quando são chamadas a intervir em determinadas situações, atuam de formas distintas perante uma situação idêntica. Se forem chamadas a intervir numa zona residencial urbana, desloca-se a esta intervenção um carro-patrulha com dois a quatro agentes das forças de segurança pública. Já se forem chamadas a intervir numa zona residencial de habitações de renda acessível, conhecidos por bairros sociais, vão dois a três carros-patrulha e, por vezes, ainda acompanhados pelos veículos do corpo de intervenção, que transportam no mínimo, de 9 a 12 agentes das forças de segurança pública. Além disso, a tolerância dos agentes também é muito divergente entre os dois exemplos mencionados, por exemplo, no primeiro exemplo, vão armados, mas só pegam na arma em situações de urgência em que esteja em causa a segurança de cidadãos ou dos agentes de segurança. No segundo exemplo, os agentes já saem com as armas de grande calibre em punho, diante de menores, idosos e mulheres. A agressividade e intolerância dos agentes é totalmente diferente entre os dois cenários, ainda que se esteja perante uma situação idêntica.
No seu treinamento, as forças de segurança instruem os aprendizes a que exista tolerância mínima, quando a intervenção se dá num bairro social ou quando as pessoas envolvidas pertençam a uma determinada classe socioeconómica, mas que estejam noutro local. Só estas orientações e a forma de atuar dos agentes de segurança pública, são por si só preconceituosas e injustas, pois o critério é excessivo só pelo facto de estes terem uma condição socioeconómica mais precária.
No âmbito dos critérios de determinação e aplicação da moldura penal, os juízes também se baseiam nestes fatores. Por exemplo, uma pessoa que tenha algumas condições financeiras tem direito a fiança. Já quem não tem as mesmas condições financeiras, nem sequer lhes é dada essa hipótese. Nos critérios de determinação e aplicação da moldura penal, o contexto social (e económico) também é determinante para a aplicação ou não aplicação de uma pena restritiva de liberdade. Se for aplicada uma pena restritiva de liberdade, esta também analisa o contexto social para aplicação de uma pena mais ou menos severa, consoante o contexto familiar, residencial, social e económico.
Imaginemos que dois jovens cometem o mesmo tipo de crime. Um deles, vive numa zona residencial urbana, os seus pais são pessoas com alguma estabilidade financeira e exercem profissões mais respeitadas/conceituadas pelo nível de qualificação que possuem. O outro jovem, vive num bairro social, os seus pais vivem com dificuldades e exercem uma profissão menos conceituada pela baixa qualificação que têm, ou estão desempregados. Os juízes e o Ministério Público, vão analisar o contexto social e vão determinar que ao jovem em que os seus pais vivem com melhores condições financeiras lhe seja aplicada uma pena restritiva de liberdade mais branda, que é o oposto que vai acontecer ao outro jovem que vive num bairro social e os seus pais vivem com mais dificuldades financeiras, pois entende-se que a probabilidade do jovem com mais estabilidade voltar a cometer um crime é menor em relação ao jovem que vive com dificuldades, devido à diferença do impacto e consequências sociais que, por exemplo, uma pena de 6 anos de pena restritiva de liberdade trará à vida de cada um destes.
A Justiça portuguesa acredita que a índole positiva ou negativa das pessoas se baseia no contexto socioeconómico e cultural, o que entendo ser um erro tremendo, pois nem todos temos a sorte de nascer num “berço de ouro”, mas nem todos os que nascem neste berço são “anjinhos”. Tal como nem todos os que nascem no seio de uma família com um contexto socioeconómico mais fragilizado são marginais e criminosos.
Se o nosso Estado atua através das Forças de Segurança Pública e da Justiça, de forma preconceituosa e discriminatória, entendendo que esta forma de atuação incrementa a igualdade social, justiça e a abstenção da prática de crimes por parte dos seus cidadãos, que tipo de sistema temos? Não é tendencialmente preconceituoso?
Na verdade, entendo que os políticos deste país e toda a população privilegiada não se consiga sensibilizar com determinadas causas, pois estes encontram-se numa situação de conforto, segurança e poder, e por isso ignoram as dificuldades sentidas, o sentimento de insegurança, abandono e desilusão sentidos pela população que tem sido ostracizada desde sempre. Assobiar para o lado, abandonar estas pessoas, não faz os políticos, seja de direita ou de esquerda, mais dignos ou melhores pessoas do que os fascistas, pois também contribuem para o crescimento destas ideologias no nosso país.
A elite política tem de ser confrontada com questões deste género, para que entendam de uma vez por todas que o nosso sistema desfavorece os que mais são ostracizados desde o momento em que saem do ventre da sua mãe, favorecendo aqueles que nascem numa esfera quase intocável devido às suas melhores condições socioeconómicas. É como se o Estado fizesse jus à expressão popular “uns são filhos da mãe e outros são filhos da madrasta”. A elite política ao continuar a não assumir esta desigualdade social alimentada pela falta de políticas inclusivas que coloquem as vidas humanas numa posição de tratamento igual, ignorando as condições socioeconómicas, só favorece a perpetuação da discriminação. Pois os que têm maior estabilidade são aqueles que têm o poder de fazer algo para que diminua o fosso existente entre as classes socioeconómicas. A vida humana não pode nem merece ser desprezada pela ambição do poder e de ganhar eleitorado!
E isso só vai acontecer quando se reconhecer que sim, o Estado é tendencialmente preconceituoso em relação aos mais desprivilegiados e sim, existe mais de um milhão de fascistas e, quiçá, até mais!
Que se faça algo! Que não se permita, como foi permitido até aos dias de hoje, que este tipo de tratamento e discursos sejam normalizados!